A primeira individual de Antonio Bokel em São Paulo poderia se chamar Eu Não Faço Grafite. Ou Versus. Respectivamente, dariam um tom irônico ou direto ao recorte exibido agora na galeria Contempo. Os dois títulos também se referem a inscrições de rua, registradas por ele, e que são um dos catalisadores de sua produção.
Contudo, Bokel se encontra em um momento mais pacificado, essencial. Por isso, Degrau é a palavra-trabalho que se torna uma senha para a entrada em universo tão particular e muito vivaz. Se a assinatura do artista carioca se espalha por um díptico no qual há a mescla livre de técnicas e materiais _ como a pintura e a colagem, a acrílica e o spray, por exemplo _, o branco que serve de superfície não é só pano de fundo. Sua predominância é decisiva e quer atestar algo harmônico.
Degrau é título de outro trabalho, em que um vermelho disposto num volume algo cônico vai se desfazendo para baixo. E a palavra degrau sedimenta a construção. Assim, Bokel lança mão da escrita e, por extensão, do mundo da linguagem via letras, sinais, códigos. Se tal opção pode se assemelhar a um passo rumo à normatização, é importante ressaltar que tais signos podem conferir sentidos poéticos às composições plásticas, revelando-se fragmentos prenhes de potência. É como se o artista recolhesse o detrito visual da urbe, reorganizasse-o e o devolvesse ainda com o conflito latente, mas também cheio de intensidade e beleza. Algo crispado, barulhento, porém fresco, enérgico, inquieto. “A metrópole é o universo da imagem totalizada, do seu desdobrar-se permanente, do seu desenvolvimento descontrolado e caótico. […] A imagem que domina o horizonte metropolitano nunca aparece como imediatismo, pura presença, mas sempre como reduplicação, multiplicação, sobreposição de elementos heterogêneos, estratificações de imagens, de códigos e de reproduções de imagens, ou seja, como imagem da imagem”1, sublinha o teórico italiano Paolo Bertetto.
Frente ao atordoante fluxo de informações e imagens, em meio a uma circulação maximizada de tudo, qual a identidade que construímos (ou aparentamos ter)? Bokel, por meio de visualidade ruidosa _ e, de certa forma, paradoxalmente, transparecendo neste instante alguma ordem _, reafirma uma identidade cambiante, tal qual Bauman, Zizek, Maffesoli e Bourriaud enumeram em teorias recentes. Assim, o bombardeio de produtos via mass media _ HQs, publicidade, revistas, jornais, cultura do consumo em geral _ que influenciou a pop art sessentista e a geração 80 nacional (lembremos Ciro Cozzolino, Alex Vallauri, Sergio Romagnolo), entre outros momentos da história da arte contemporânea, parecem inocentes inserções cotidianas, caso haja a comparação com o turbilhão de redes e equipamentos virtuais e móveis à nossa disposição hoje.
Na sua vivência em Rio Comprido, bairro da zona norte onde mantém ateliê _ anteriormente nobre, a região se degradou com a implantação horrenda de um ‘minhocão’ de concreto em sua via central _, o artista assimila, apropria-se, reinventa elementos caóticos do entorno. Contudo, por maneiras mais refletidas. O jogo de apagar e expor porções de lambe-lambes da cidade, o multifacetado fazer rotineiro _ os suportes usados podem ser tela, papel kraft, bronze, papel fotográfico vistoso, concreto; as linguagens mixam pintura, colagem, grafite, desenho, escultura, instalação, fotografia _ e o olhar sempre ‘amador’ _ fazendo com que, por exemplo, recente série fotográfica tenha surgido a partir de breve viagem a São Paulo _ traduz uma postura não confortável do artista. A obra contestadora de Antonio Bokel, portanto, traz uma intranquilidade típica de ciclos vitais e que exibe e media nossos dilemas e experiências diários, por meio dos embates entre o natural e o construído, o conformado e o trangressor, o silencioso e o sonoro, o moribundo e o pulsante, trafegando provocativamente entre a essência e o simulacro.
Mario Gioia / curador